30 de jan. de 2009

Canto de fé


Clara Nunes cumpriu sua missão cantando um Brasil popular, mestiço e negro


Silvia Brügger


Se vocês querem saber quem eu sou

Eu sou a tal mineira

Filha de Angola, de Keto e Nagô

Não sou de brincadeira

Canto pelos sete cantos

Não temo quebrantos

Porque eu sou guerreira


Assim se apresenta Clara Nunes em “Guerreira”, música composta especialmente para ela por João Nogueira e Paulo César Pinheiro em 1978. Os versos resumem a imagem pública da cantora, uma das maiores intérpretes da música brasileira, falecida em 1983.
Mas até assumir essa identidade ela trilhou um caminho de transformações pessoais e profissionais. Clara Francisca nasceu em 1942, em Paraopeba (atual Caetanópolis), interior de Minas Gerais. Sétima filha de Mané Serrador, folião de reis e violeiro famoso na região, ela conviveu desde pequena com manifestações típicas da cultura popular: folias, pastorinhas e congado. Ao ficar órfã de pai e mãe aos quatro anos de idade, foi criada por seus irmãos mais velhos José e Maria (a quem ela chamava de Dindinha). Além das brincadeiras comuns de cidade pequena, uma das diversões locais era organizada por um farmacêutico, que imitava os então famosos programas de calouros e de auditório em um teatro cedido pela fábrica de tecidos Cedro Cachoeira. Clara era presença certa nesses eventos, colecionando prêmios e elogios do apresentador, que a chamava de “menina dos meus olhos”.




Ainda jovem, escapava até a cidade vizinha, Sete Lagoas, para se apresentar em programas de rádio. Não que esse comportamento já indicasse o futuro artístico que teria. Muitas meninas também se envolviam com o canto e outras formas de arte, como sua própria irmã Vicentina, que vivia às voltas com apresentações teatrais. Clara ainda não adotara o sobrenome Nunes da mãe, com o qual se consagraria artisticamente. Era apenas Clara Francisca, uma menina a se divertir com a música.
A vida na cidade grande começou aos 16 anos, quando se mudou com alguns irmãos para Belo Horizonte. Foi morar no bairro Renascença, onde conseguiu emprego em uma fábrica de tecidos. No tempo livre, freqüentava as barraquinhas das quermesses da Igreja de Santo Afonso. E ali, cantando sem compromisso, seu destino cruzou com o do músico e compositor Jadir Ambrósio (1922-). Encantado com a voz da moça, Jadir fez questão de arranjar oportunidades para ela se apresentar em bares e nas rádios.
O canto começava a ganhar ares de trabalho. Em 1960, já era conhecida como Clara Nunes quando venceu a fase mineira do concurso de rádio “A Voz de Ouro ABC”, cantando Vinicius de Moraes. Na competição nacional, ela ficou em terceiro lugar. Assim, Clara se projetou no cenário artístico mineiro. Foi contratada pela Rádio Inconfidência, gravando seu primeiro registro fonográfico no LP “Os Vibrantes 25 Anos da Rádio Inconfidência”. Cantou a música “Vida cruel”, de Jadir Ambrósio e Wilson Miranda. Em 1963, assinou contrato com a Rádio Guarani e com a TV Itacolomy, retransmissora mineira da Rede Tupi, na qual tinha um programa só seu. Era o “Clara Nunes Apresenta”, que vez por outra recebia estrelas nacionais, como Ângela Maria. Em 1964, foi coroada rainha do carnaval de Belo Horizonte.
Mas quem sonhava em progredir na carreira artística tinha que se aproximar de um dos pólos da indústria cultural: São Paulo ou Rio de Janeiro. Clara Nunes mudou-se para o Rio ao assinar contrato com a multinacional Odeon. Seu primeiro disco, “A Voz Adorável de Clara Nunes”, saiu em 1966. A idéia da gravadora era fazer dela um “Altemar Dutra de saias”, numa referência ao “rei do bolero” no Brasil. Nos anos seguintes, seu repertório flertaria com diversos estilos. Cantava boleros, sambas-canções e versões de músicas estrangeiras, além de uma passagem efêmera pelo iê-iê-iê, rock brasileiro que fazia sucesso a partir do movimento da Jovem Guarda, capitaneado por Roberto e Erasmo Carlos. Chegou a participar, ao lado de Wilson Simonal, do filme “Na Onda do Iê-Iê-Iê” (1966), dirigido por Aurélio Teixeira. Gravou também sambas, sobretudo no LP “Você passa, eu acho graça” (1968), que, além do samba-título, de Ataulpho Alves e Carlos Imperial, trazia composições de Noel Rosa, Martinho da Vila e Darcy da Mangueira.



Trabalho não lhe faltava: Clara cantava em rádios, em programas de TV, em filmes, no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Fortaleza e em Minas. Mas o sucesso comercial demorou a chegar. Seu primeiro disco vendeu apenas 3.100 exemplares. O segundo, 6.900. O terceiro, 6.500.
A virada começou nos anos 1970, quando passou a ser produzida pelo radialista Adelzon Alves (1939-). Ele era conhecido por seu programa “O Amigo da Madrugada”, da Rádio Globo, dedicado à divulgação do samba, mas nunca havia atuado como produtor de discos. O convite feito a ele pela Odeon indicava que se desejava dar novo rumo à carreira de Clara. Os ideais socialistas da época, de valorização da cultura popular brasileira como forma de superação das mazelas da sociedade capitalista e de resistência à dominação estrangeira, em especial à norte-americana, presentes na formação de Adelzon, nortearam, a partir de então, o trabalho da intérprete.
Clara possuía em sua trajetória pessoal as vivências do universo popular que o produtor propunha valorizar em sua carreira. Ela percebeu que, parafraseando o samba de Xangô da Mangueira, “quando veio de Minas”, “trouxe ouro em pó”: o ouro representado pela cultura popular. A cantora se transformou, a partir de então, em uma verdadeira pesquisadora, procurando registrar as mais variadas manifestações dessa cultura. Em suas muitas viagens, levava um gravador para registrar as músicas que ouvia Brasil afora. A diversidade dessas tradições passa a aparecer no repertório: além de sambas, Clara gravou frevos, forrós, cantos de trabalho, cirandas e chulas.
O gosto pelo folclore influenciou até seus compositores mais assíduos. Toninho Nascimento, parceiro de Romildo em muitas músicas gravadas por Clara, recorria a livros sobre cultura popular, como O Folclore de Januária, para se inspirar.
As performances acompanharam a transformação do repertório da cantora. As interpretações se aproximaram do canto popular e os instrumentos de percussão ganharam destaque nos arranjos. A aparência da nova Clara era outra: vestia-se de branco, assumia progressivamente os cabelos crespos (abandonando as perucas do início da carreira) e exibia as guias de seus “orixás de fé”.
O interesse pelo universo popular levou Clara a se aproximar da cultura afro-brasileira. No início de 1971 fez sua primeira viagem à África, visitando Moçambique, África do Sul e Angola, onde apresentou seu canto no primeiro concurso de miss do país e conheceu danças populares. De volta, trouxe na bagagem roupas, colares, peças de artesanato e muita inspiração para dar à África lugar de destaque em sua carreira.
A idéia de filiação cultural do Brasil ao continente negro está presente em várias canções, como “Misticismo da África ao Brasil” (Mário Pereira/Vilmar Costa/João Galvão, 1971) e “Mãe África”, em que canta: “No sertão, mãe preta me ensinou/Tudo aqui nós que construiu/Filho meu, tu tem sangue nagô/Como tem todo esse Brasil” (Sivuca/ Paulo César Pinheiro, 1982). As músicas que Clara Nunes gravou se afinavam com o discurso de parte do movimento negro brasileiro, que crescia nos anos 1970 defendendo a resistência cultural e a valorização das raízes africanas como forma de lutar contra o racismo.
Outro ponto importante dessa ligação de Clara com a cultura negra foi a questão religiosa. Ela não foi a primeira nem a única cantora a entoar o universo dos orixás. Mas esta associação foi tão forte que até hoje esta é a imagem que permanece na lembrança popular: vestida de branco, usando guias, com seus longos e volumosos cabelos crespos. A presença das religiões afro-brasileiras em seu repertório coincidiu com a expansão e o fortalecimento do candomblé. Processo no qual a música popular teve papel destacado.
Mas a identificação de Clara com as religiões afro-brasileiras não era apenas artística. A religiosidade sempre fez parte de sua vida. De família católica, participou na infância da Cruzada Eucarística e cantou no coro da igreja. Na juventude, assumiu o espiritismo kardecista, junto com alguns de seus irmãos. No Rio de Janeiro, aderiu à umbanda e ao candomblé sem abandonar o kardecismo e mesmo, eventualmente, práticas católicas, como a participação em missas e o recurso à comunhão. Sua experiência religiosa sincrética, tipicamente brasileira, nada tinha de superficial. Pessoa de muita fé, lia sobre o assunto. Definia-se como espírita. Mas percebia que as continuidades existentes entre essas religiões lhe permitiam transitar por elas.
A religião era tão importante para Clara que ela conferia ao seu canto um sentido religioso. A música “Minha Missão”, composta por Paulo César Pinheiro e João Nogueira e gravada no LP “Clara” (1981), explicita isto: “Quando eu canto/Estou sentindo a luz de um santo/Estou ajoelhando aos pés de Deus”; “O meu canto é uma missão/Tem força de oração /E eu cumpro meu dever”. Mas o canto tem também um significado político: “Canto para denunciar o açoite/Canto também contra a tirania/ Canto porque numa melodia/Acendo no coração do povo/A esperança de um mundo novo/E a luta para se viver em paz”.
Apesar dos pontos em comum, havia uma diferença entre a mensagem de Clara e o discurso de parte do movimento negro, de alguns intelectuais e pais-de-santo. Enquanto eles defendiam uma suposta “pureza” cultural africana, a cantora afirmava a mestiçagem. É o que se pode ver na música “Nanaê, Nanã Naiana”, composição de Sidney da Conceição gravada por Clara no LP “Alvorecer”: “Sinhazinha ninada, embalada no cantar da negra otina Nanaê/Herdou todo o seu ser/Hoje em noite de luana é sinhazinha/Quem vai dançar na Mujungana, Nanaê”. Se por um lado a canção sublinha a exploração sofrida pela escrava Nanaê, por outro mostra como a cultura africana é incorporada pela sinhazinha branca ninada por ela. Herdeira do ser africano, essa criança é uma representação do próprio país.
Em Clara, a afirmação do Brasil negro convive com a idéia do Brasil mestiço. Isso fica evidente nos próprios títulos do disco e do espetáculo “Canto das Três Raças”, respectivamente de 1976 e 1977, do LP “Brasil Mestiço”, de 1980, e do show “Clara Mestiça”, de 1981. Para ela, a mestiçagem não era sinônimo de síntese, não anulava as diferenças. Isso explica por que rejeitava o rótulo de “sambista”, mesmo tendo forte ligação com o mundo do samba, em especial com a Portela, sua escola do coração. Intitulava-se uma “cantora popular brasileira”. Cantava diferentes gêneros de nossa música, mostrando a diversidade cultural do Brasil mestiço.
A mestiçagem também não era associada por ela a uma suposta harmonia racial. Pelo contrário, o canto de Clara explicita os conflitos. Várias músicas de seu repertório denunciam situações de exploração e de desigualdade social, do passado escravista ao cotidiano árduo dos trabalhadores e às agruras dos nordestinos que convivem com a seca – “Ê, vida de cão!/ Trabalha e nunca tem nada não/ Danação!/ Arrancando o couro pro patrão” (“Cinto Cruzado”, Guinga/ Paulo César Pinheiro, 1982).
Cantar este Brasil popular, mestiço e negro foi o que Clara entendeu ser a sua missão. Por isso, o seu ofício era de natureza religiosa. O seu canto era de fé!
Silvia Brügger é professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São João Del-Rei e organizadora do livro O canto mestiço de Clara Nunes (UFSJ, 2008).

MATÉRIA DA HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL

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