28 de jan. de 2008

Clara Luz da música

Sambista cheia de graça e malícia, Clara Nunes era espevitada que só ela; sua obra, coisa séria, é um monumento à mistura musical do Brasil

por Malu Rangel
Quem vai para a Portela sabe que samba de bamba não tem hora para acabar. Só uma coisa é certa: a batucada começa no coração da escola, que fica na rua Clara Nunes, número 81.
Se Clara Francisca Gonçalves imaginava que seu nome ocuparia lugar central em uma das maiores escolas de samba cariocas, fica difícil dizer. Mas a menina nascida no interior de Minas Gerais em 1942 - no município de Cedro, hoje Caetanópolis, subdistrito de Paraopeba -, caçula de sete irmãos, tinha como maior sonho ser cantora. Só cantora, não: queria ser famosa, como aquelas que não saíam das estações de rádio. Algo entre Carmem Costa, Dalva de Oliveira e Elizeth Cardoso, para começar. Afivele a sandália: Clara, a diva morena, vai puxar o samba.

Entre violas e agulhas

O convívio - e o namoro - de Clara com a música começaram cedo. O pai, operário da fábrica de tecidos da região, era congadeiro, violeiro e organizador da Folias de Reis. Na época de Natal, saía de casa na noite do dia 24 de dezembro e voltava apenas em janeiro, no tradicional Dia de Reis, animando a vizinhança.
Afora os dias de festa, a vida era igual toda vida. Cidade pequena, família grande, muito trabalho em casa e na fábrica de tecidos, para ajudar no sustento. Com muita dificuldade, ia-se sobrevivendo, uma vidinha modorrenta que só. Como num poema de Carlos Drummond de Andrade sobre os cantões de Minas.

Mas uma tragédia se abateu sobre a família: a morte do pai e, alguns anos depois, da mãe deixaram Clara órfã aos 6 anos de idade. A menina viveria até a adolescência sob a guarda do casal de irmãos mais velhos. Aos 14 anos, o primeiro emprego, o mesmo destino: tecelã na Companhia Fiação e Tecidos Cedro e Cachoeira. Clara debutava no mundo das máquinas, esmagada pelo sistema cinza, sem graça: acordar de madrugada, vestir o uniforme, bater cartão, uma hora de almoço, retorno à seção, saída. Tudo igual até os 15 anos. No dia 3 de setembro de 1957, seu irmão mais velho, Zé Chilau, matou o namorado de Clara, que andava espalhando infâmias sobre a menina pela cidade.


Seria preciso dizer que a vida virou de pernas para o ar?

Desprezada pela sociedade de Cedro, com o irmão foragido, não restava a Clara nada além de colocar as roupas na mala e sair pelo mundo. A estrada mais próxima levava a Belo Horizonte. E lá foi ela, morar na casa de uma tia e trabalhar na Companhia Renascença Industrial, uma das mais importantes indústrias têxteis do Brasil.

Dos teares para o mundo

Os funcionários da Renascença ocuparam alguns lotes vagos ao lado da fábrica para criar um campo de futebol. Depois do campo, surgiram as arquibancadas, os vestiários e, pouco a pouco, um clube foi sendo construído. Numa das festas desse clube, assiduamente freqüentado por Clara, ela conheceu Aurino Araújo, um jovem playboy da sociedade mineira.
Começaram a namorar ao mesmo tempo em que Clara decidiu levar adiante, e mais seriamente, o sonho de ser cantora. Ao saber que na igreja perto de sua casa havia um coral, foi se apresentar ao maestro, Jadir Ambrósio, compositor respeitado em Belo Horizonte. De lá, foi um pulo para cantar no rádio, inscrever-se e ganhar o terceiro lugar do concurso nacional A Voz de Ouro ABC (uma empresa brasileira que fabricava televisores, rádios e vitrolas). Nada mal para Clara Francisca Gonçalves, que, naquele ano de 1960, passaria a ser conhecida como Clara Nunes.
O concurso A Voz de Ouro ABC abriu muitas portas para Clara: ela começou a cantar como crooner em boates da cidade e foi considerada, por três anos consecutivos, a melhor cantora de Minas Gerais; comandava um programa de rádio e outro de televisão, Clara Nunes Apresenta, no qual se apresentavam artistas famosos, como Altemar Dutra e Ângela Maria. A etapa Cedro-Belo Horizonte já estava vencida. Agora, em breve, Clara Nunes desembarcaria na cidade maravilhosa.

Um lugar que já não há

Assim que Clara desembarcou na rodoviária do Rio de Janeiro, com trejeitos e vestidos de menina mineira a tiracolo, em meados de 1965, Elis Regina estourava nas telinhas preto-e-branco com o programa de auditório O Fino da Bossa. Em parceria com Jair Rodrigues, ela cantava, apresentava novos talentos da moderna música popular brasileira e, de quebra, angariava público - ou melhor, consumidores - para a incipiente indústria fonográfica brasileira.
As gravadoras ficavam cada vez mais profissionais no garimpo de grandes talentos capazes de se converter em cifras milionárias. Havia para todos os gostos: os “engajados” com suas canções de protesto, os “alienados” e suas melodias água-com-açúcar... Eram sinais da transformação da música em mercadoria, e, por mais que alguns artistas lutassem (e lutavam), a coisa começava a ficar séria.

Clara entrou no meio desse furacão, querendo saber qual a fórmula do sucesso. Precisava ficar conhecida pelo público carioca, ela que já era uma das mais aplaudidas cantoras de Minas. E dá-lhe apresentações em programas populares como o de Chacrinha, José Messias, Almoço com as Estrelas... Foram essas apresentações que renderam o primeiro grande resultado rumo ao estrelato: a contratação pela gravadora Odeon, em 1966.




O primeiro LP, A Voz Adorável de Clara Nunes, entretanto, não foi o sucesso que Clara e seus produtores esperavam. Na verdade, a voz da cantora estava desperdiçada em boleros e sambas-canção de um repertório antigo, fora de moda, tentativa de fazer de Clara uma cantora romântica.
Demorou até que Clara achasse seu rumo artístico. Pouco a pouco, ela foi conhecendo pessoas interessantes e definindo melhor o que gostaria de fazer: Jair Rodrigues, Paulinho da Viola e, especialmente, Hermínio Bello de Carvalho, com quem Clara sonhava produzir um disco e um show. Afinal, ele lançara Clementina de Jesus no show Rosa de Ouro, que Clara tinha assistido nada menos que 13 vezes, e havia produzido trabalhos antológicos, inclusive com Elizeth Cardoso, uma das divas de Clara.
O responsável pela reviravolta na carreira (e na vida) de Clara, entretanto, não foi Hermínio, mas o radialista Adelzon Alves. Produtor de um programa que revelava compositores pouco conhecidos, Adelzon bateu o olho em Clara e entendeu na hora o que precisava ser feito.

No compasso do samba

Adelzon resolveu transformar Clara em uma cantora genuinamente brasileira, que recuperasse as raízes tradicionais da música por meio do samba e das vertentes afros. Adeus boleros, foto-novelas e blusas bufantes cor-de-rosa. Clara adotaria vestidos longos, rendas, colares, guias de santo, pulseiras e turbantes, num visual que remetia às religiões afro-brasileiras. Perfeito para ela que, segundo o biógrafo Vagner Fernandes, “era um caldeirão espiritual”: vinha do kardecismo, denominava-se umbandista e flertava com o candomblé, além de comungar.
Deu certo: o álbum Clara Nunes, o primeiro produzido por Adelzon, vendeu mais do que todos os anteriores. O repertório trazia, entre outros, João Nogueira, Noel Rosa e Luiz Gonzaga. Clara despontava na mídia e ganhava a crítica. A mudança de repertório fez com que Clara se aproximasse ainda mais da Velha Guarda da Portela, escola que já amava e que seria importante até o final de sua carreira. Um de seus compositores mais ilustres, Candeia, presenteou-lhe com a belíssima O Mar Serenou. Ele sabia de Clara: quem samba na beira do mar só poderia mesmo ser sereia.

Graças e oferendas

Um dito popular bem antigo avisa: “Quem não pode com mandinga não carrega patuá”.
Mas Clara podia, e muito. E o que não faltavam eram guias e santos protegendo sua cabeça. Quanto mais se aprofundava nas canções afro-brasileiras, mais enveredava pelos caminhos da religião. Filha de Ogum, Oxum, Iansã, Xangô... Ou, quem sabe, um pouco de cada, caso pudesse.
Foi nessa época que Clara fez um show com Vinicius de Moraes e Toquinho, Poeta, Moça e Violão. O espetáculo estrearia em nenhum lugar menos que Salvador, e justamente na fase em que Vinicius se considerava “o branco mais preto do Brasil”, descobrindo o candomblé e a Mãe Menininha do Gantois. Encontro abençoado pelos orixás e pela música.
Clara despontava mais e mais: apresentou-se em países da Europa (cantou um ponto para Iansã na praia de Cannes), gravou novos discos e encenou um espetáculo com Paulo Gracindo - Brasileiro, Profissão Esperança. Era maré cheia, que mareia...
Brasil mestiço
O casamento de Clara com Paulo César Pinheiro, em 1975, inaugurou uma nova fase na carreira da intérprete. O álbum Canto das Três Raças, de 1976, produzido por ele, trazia Clara mais madura, arriscando-se para além do território do samba. Modinhas, canções mais sérias, pontos de capoeira... havia de tudo um pouco nesse álbum, mostrando a versatilidade da intérprete. Ela começava a se sentir madura e era reconhecida por isso: Clara foi consagrada pela crítica como a melhor cantora do ano. Na mesma época, ela e Paulo compraram um teatro na Gávea, batizado de Clara Nunes, e foi lá que ela estreou o show Canto das Três Raças, o primeiro individual de sua carreira.

A preocupação do espetáculo em mostrar um pouco das três raças que formavam o povo brasileiro repercutiu nos discos seguintes de Clara. A preservação da memória musical e a dignidade que poderia ser conferida ao povo por meio das canções foram ficando cada vez mais fortes em suas escolhas. E elas, por sua vez, cada vez mais engajadas: Clara participou de diversos eventos com fundo político.

Em 1979, com um time de artistas de primeira, que contava com Martinho da Vila, Dorival Caymmi, Djavan, Edu Lobo e João do Vale, organizado por Chico Buarque e Fernando Faro, Clara foi para Angola montar o espetáculo Kalunga. Conheceu uma parte da realidade da África, tão musical e sofrida quanto o Brasil, apresentou-se em praça pública e voltou com uma canção especial na bagagem: Morena de Angola, feita por Chico Buarque especialmente para ela. A música tornou-se um sucesso e uma espécie de emblema de Clara, sempre lembrada pelos versos e pela cadência morena.

Brasil Mestiço e Nação, seus últimos discos, são, paralelamente, os primeiros do que parecia um longo caminho. São o encontro da intérprete com sua vocação: a de festejar, por meio do canto, a identidade tão rica e eclética de um mesmo povo.

Eu quero uma batucada

No dia 2 de abril de 1983, Clara Nunes morreu, vítima de uma anafilaxia provocada por uma operação de varizes. Batuques de terreiro, tamborins do samba, violas do interior do Brasil saudaram a memória de Clara e sua voz, que, certamente, continua ressoando e organizando festas - agora ao lado de todos os seus santos, quem sabe? Por aqui, deixou admiradores, fez escola, é venerada. A cantora paulistana Fabiana Cozza prestou atenção nas aulas: “Ouvi muito a Clara e me sinto herdeira de seu trabalho e riqueza musical. Ela empresta sua voz ao Brasil negro e exalta sua cultura. Fala de seu universo sagrado, conta sobre os orixás, as comidas e o cotidiano do homem brasileiro”.
Em um de seus textos, a jornalista Ana Maria Bahiana se pergunta por que os brasileiros, donos de um legado musical invejável, tropeçam desesperados em busca de ídolos inexistentes, cegos para a qualidade dos intérpretes e das canções que se constroem e se renovam a cada instante.
Clara Nunes talvez seja um dos poucos exemplos em que o reconhecimento veio com a obra: aclamadas pelo público, suas brejeiras interpretações se tornaram eternas ainda enquanto nasciam para nossos ouvidos.

Para saber mais
Livros:• Clara Nunes, Guerreira da Utopia, Vagner Fernandes, Ediouro.
fevereiro de 2008

Nenhum comentário:

CLARA NUNES, MEU SONHO CRISTALINO!

guerreira!

MINHA HOMENAGEM Á CLARIDADE

Powered By Blogger

PARCERIA MERCADO LIVRE

ANINHA VIEIRA

Minha foto
BRASIL, RS, Brazil
MAIS UM ESPAÇO DEDICADO A NOSSA ESTRELA MAIOR CLARA NUNES. CLARA, NÓS TE AMAMOOOOOOOOOOOOOSSS!!!! ANINHA VIEIRA/RS