CLARA NUNES E O CANDOMBLÉ

Clara Nunes não é baiana nem fluminense. É mineira, uma grande cantora que teve sua trajetória interrompida por sua polêmica morte, por choque anafilático, em 1983, aos 39 anos, quando estava no auge de suas canções.

Consta que seu pai era violeiro e cantador da Folia de Reis, o que permitia que Clara tivesse, desde cedo, contato com a música popular

Mas o estilo musical que a consagrou demorou a acontecer. Na década de 60, cantava boleros, músicas românticas e até jovem guarda. Consta que, somente em1968, com a ajuda de Ataulfo Alves, convenceu os diretores de sua gravadora a gravar samba.

Coincidência ou não, foi no começo da década de 70, cantando samba e depois de uma viagem à África, que Clara Nunes fez sucesso. Na verdade, existem poucos cantores cuja trajetória musical tem tanta religiosidade negra quanto Clara Nunes.

Rachel Rua Baptista Bakke, inclusive, escreveu uma tese de mestrado sobre a religiosidade de Clara Nunes, num trabalho intitulado Tem orixá no samba: Clara Nunes e a presença do candomblé e da umbanda na música popular brasileira. Seguem alguns trechos do trabalho:

“Pode-se dizer que a viagem à África funcionou como um divisor de águas tanto na vida espiritual quanto na carreira dessa artista. Na volta, inspirada por essa experiência, Clara elaborou, com a ajuda do radialista Adelzon Alves, uma nova proposta de carreira que foi imediatamente apresentada a Odeon. Era o início da consolidação de uma carreira artística fortemente marcada por um estilo e uma imagem que aproximava a cantora do samba e da umbanda, o que a levou a ser rotulada como “Sambista, Cantora de Macumba”.

(…) Tinha que ser uma carreira planejada e que tivesse como base a imagem afro-brasileira da Carmen Miranda. (…) Eu levava ela para a casa do Candeia mas também levava para a casa da Vovó Maria Joana Rezadeira, que era uma mãe-de-santo que havia no Império Serrano. Era um ícone. A Clara também era muito amiga do pai Edu (…). Aí tinha um costureiro chamado Geraldo Sobreira, que já era amigo dela, e foi desenvolvendo aquele estilo, aquelas roupas. Então, a carreira tomou esse rumo em função de ela ser levada para o lado do samba e de já ter amizade com pessoas ligadas à umbanda, como o caso da Vovó Maria Joana Rezadeira.

Nos anos de 1970 e 1980 o candomblé ganhou as ruas, tornou-se enredo de escola de samba, alegoria de blocos carnavalescos em Salvador, elemento de trama de “novela das oito”, tema de música interpretadas por cantores populares da MPB etc.

O “retorno à África”, nesse contexto, ganhou outros contornos que extrapolaram os limites da religião. Nesse período, muitos artistas, assim como os sacerdotes de outrora, dirigiram-se à África, uma África muitas vezes mítica e idealizada, no afã de redescobrir uma essência de brasilidade, sobretudo negra, que passou a ser cantada nas rádios e TVs.

Começou assim um processo de construção de uma imagem artística que associava a cantora às tradições culturais afro-brasileiras. Os símbolos utilizados para articular a obra da cantora com o universo cultural afro-brasileiro, e mais tarde brasileiro, foram essencialmente retirados do candomblé e da umbanda, e apareciam nas músicas que cantava, nas suas performances em shows, e nas reportagens de jornais e revistas que, ao divulgarem elementos da vida cotidiana e íntima de Clara, revelavam para um público maior o estilo de vida do povo de santo.

Produzida por Adelzon Alves, Clara passou a se apresentar só de branco, gravou alguns pontos de umbanda e candomblé, fez curso de expressão corporal e dança afro e procurou se aproximar de alguns compositores como Cartola, Nelson Cavaquinho, Candeias, Romildo e Toninho, Martinho da Vila, João Nogueira entre outros. Foi também nesse período que começou a freqüentar as escolas de samba do Rio, quando conheceu a Portela que se tornou sua escola do coração.

Nas diversas entrevistas que concedia sobre sua carreira e vida pessoal, sua ligação com a umbanda ou o candomblé estava quase sempre presente. A cantora declarava abertamente o seu pertencimento a essas religiões, ainda que muitas vezes evitasse revelar detalhes de suas atividades religiosas.

“Sou muito supersticiosa. Não visto preto, não deixo porta de armário aberta, não coloco sapatos em cima do armário e só canto de branco. É uma cor que transmite paz, coisa boa para o público. Dá uma aura legal. Sou também muito mística. Para começar, na minha religião, quando a gente faz a cabeça, assume certas obrigações e deve cumprí-las. Eu sigo tudo à risca. Mesmo as coisas que eu adoro, eu deixo de fazer. Comer doce de abóbora , por exemplo. É comida do meu santo. Eu não posso comer. Não como.”

Essas declarações despertavam a curiosidade do público em geral, que acabava conhecendo, assim, vários aspectos da religião como os tabus alimentícios, os rituais de iniciação, as “mudanças de santo” etc.

Acreditando no esgotamento do estilo afro, com o qual alcançou sucesso, Clara foi pouco a pouco mudando seu repertório, sua forma de aparecer para o público e o discurso sobre seu trabalho. Almejava deixar de ser a “cantora de macumba” e passar a ser reconhecida como uma “cantora popular brasileira”.

“Eu sou uma cantora popular brasileira. É uma coisa que eu sempre lutei, sempre almejei na minha vida ser cantora popular. (…) Então eu não posso me situar se eu sou sambista. Eu sou uma cantora autêntica brasileira. (…) Não quero ser rotulada como cantora de macumba. Nunca gravei um ponto verdadeiro. Respeito muito minha religião.”

Na produção artística de Clara Nunes, as referências às religiões afro-brasileiras extrapolam os ritmos e as letras das músicas e aparecem também na performance da artista em shows e aparições na TV, assim como no material de divulgação de seu trabalho como as capas e encartes do LPs. Isso é uma característica que a diferencia de outros artistas da época cujo repertório musical também apresenta muitas referências ao universo religioso afro-brasileiro.

Um belo resumo sobre a religiosidade de Clara Nunes. Não é à toa que, na ocasião de sua morte, muitas lendas relacionaram seu falecimento (causado por uma reação alergia ao componente de um anestésico, quando ela faria um procedimento cirúrgico simples) com questões relacionadas à sua religião, como se ela tivesse o“corpo fechado”, motivo pelo qual Clara teria preferido receber anestesia geral à peridural, além de que sua cirurgia teria sido realizada durante a quaresma, momento em os terreiros, geralmente fecham, e nenhuma atividade religiosa é realizada, sendo um tabu, para os filhos de santo, submeterem-se à cirurgia nesse período.

Uma cantora que faz falta…

Fonte: MusicBlog